segunda-feira, 2 de junho de 2008

"1964"


Há quatro décadas, o Alto Comando do Exército assumia o governo brasileiro, antecipando em vinte anos as práticas de vigilância, captura e sevícia contra “dissidentes” do Partido, descritas no clássico “1984”. Também embalada por ficções, a grande imprensa sempre soube explorar a violência institucionalizada nos “anos de chumbo” (1968-1978), enfatizando, seja no noticiário, seja em propagandas, sua “heróica resistência” ante os atentados contra os direitos humanos, notadamente a liberdade de expressão. Numa dessas campanhas, imagens de arquivo flagram agressões sofridas por jornalistas da Folha de S.Paulo que resultaram em ossos e câmeras quebrados. O slogan é memorável: "Nestes 75 anos, a gente apanhou um bocado. Mas aprendeu a fazer o melhor jornal do país".

A Folha apanhou tanto que se esqueceu de que foi nesse período que ela e outros grandes veículos de comunicação mais prosperaram, graças aos generosos fundos provenientes do governo militar. Cinco dias antes de o “golpe” de 31 de março completar 40 anos, a reportagem de capa da revista AOL revela que a maioria dos jornais, na verdade, nunca foi perseguida pela ditadura, inclusive a Folha. Pelo contrário, diz o jornalista Mino Carta na entrevista: “A Folha não só nunca foi censurada, como emprestava a sua C-14 [carro tipo perua, usado para transportar o jornal] para recolher torturados ou pessoas que iriam ser capturadas [sic] na Operação Bandeirante. Isso está mais do que provado. E hoje você vê esses anúncios da Folha, o jornal desse menino idiota chamado Otavinho [Otavio Frias Filho]. Esses anúncios contam de um jeito que parece que a Folha sofreu muito, mas não sofreu nada.”

Não obstante as punições previstas no Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990), propaganda enganosa é o que os Frias fazem de menos. Também não é novidade que vários órgãos eram assim com os homens, no que podemos destacar as Organizações Globo. Mas... a Folha? “Nunca foi perseguida”? “Colaborou” emprestando seus Chevrolets? As revelações de MC sacudiram o meio jornalístico, embora não fossem novidade desde 1999, quando Mario Sergio Conti lançou Notícias do Planalto:

Até o final de 1968, as organizações terroristas de esquerda destacaram alguns de seus militantes jornalistas para trabalhar na Folha da Tarde e nos início dos anos 70 foi a vez de policiais dos órgãos de informação da ditadura se assenhorearem do jornal. O atual diretor de Redação da Folha de S.Paulo, Otavio Frias Filho, ouviu na faculdade histórias sobre o envolvimento da empresa da família com os órgãos de repressão política, inclusive sobre o uso de caminhonetes na caça aos esquerdistas. Perguntou ao pai qual era a verdade. ‘Se aconteceu, foi à minha revelia’, respondeu Frias. ‘Nunca me pediram isso’.
As declarações de Mino de que somente Veja e JB foram censurados, e quando justamente estes estavam sob sua direção (de Mino), foram recebidas com ceticismo. "Quer dizer que somente o Mino foi censurado? Muito suspeito. Como é suspeito o fato de o UOL (leia-se Folha/Abril) ser concorrente direto do AOL", diz o professor Frederico Sousa. Sem dúvida, há interesses por trás da entrevista, mas um interesse maior se sobrepõe: Folha de S.Paulo e Estadão realmente COLABORARAM com a ditadura? Em qualquer democracia de verdade, o Ministério Público teria requisitado um inquérito policial para apuração de responsabilidades.

Embora a Lei da Anistia (6.683/1979) concedesse perdão a todos que “cometeram crimes políticos ou conexos com estes” desde 2 de setembro de 1961 até 15 de agosto de 1979, isto é, até treze dias antes da publicação da lei, excetuava, no parágrafo segundo, “os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal”. E quanto aos casos não julgados? Uma participação da Folha nos referidos seqüestros, se confirmada, não a tornaria cúmplice de torturas, crime insuscetível de graça ou anistia?

O funcionário público Winston “Churchill” Smith, protagonista de "1984", tem por tarefa reescrever a História diariamente, adulterando fotografias e “editando” arquivos do The New York Times, entre outras publicações, conforme interesses do Ministério da Verdade. George Orwell só não disse que a destruição da memória nacional é levada a cabo não só por agentes e forças externos. Os próprios jornais encarregam-se disso com o mesmo empenho e competência. Talvez demasiado orwelliano mesmo para George...

(Academvs - abril de 2004)

ombudsboy@gmail.com

2 comentários:

Nélio Lobo disse...

Texto de Costábile Nicoletta, editor-chefe do Meio&Mensagem, publicado por ocasião da morte de Octavio Frias, há 1 ano:


NEM TÃO LIBERAL ASSIM


Em que pese a vitoriosa trajetória
pessoal e profi ssional de
Octavio Frias, sua fi gura nunca
desfrutou de consenso. O jornalista
Mino Carta, editor de Carta
Capital e um dos maiores nomes
da imprensa brasileira, disse em
entrevista publicada em 2006 na
revista Caros Amigos que a Folha,
diferentemente da propalada pluralidade,
sempre serviu à ditadura
e cresceu graças às benesses do
poder. “Até hoje o jornal, que gosta
de posar de democrata e transparente,
tenta esconder esse período
macabro, que revela todo o seu
caráter de classe e a sua postura
direitista”, alfi netou Carta.

Há razões para a crítica de
Carta. O liberal Frias teve, de
fato, uma história controversa
em suas posições políticas. Logo
ao comprar a Folha, teria feito do
jornal um instrumento a serviço da
conspiração golpista. Estampava
manchetes sensacionalistas contra
o “perigo comunista” e assinava
editoriais contra a “corrupção e
a subversão”. Na fase mais aguda
da ditadura militar, por exemplo, a
Folha da Tarde, também do grupo,
divulgava a “morte de terroristas
em emboscadas policiais” quando
estes ainda estavam na prisão.

A falsa notícia servia para encobrir
as torturas. Grupos armados,
como resposta, incendiaram
três peruas da empresa, usadas
não só para transportar o jornal
como para recolher torturados ou
pessoas que seriam torturadas na
Operação Bandeirantes (Oban),
órgão de segurança que combatia
a subversão, inaugurado em 1969.
Assustada, a família passou a
morar no prédio da Folha — de
setembro de 1971, quando da
morte de Carlos Lamarca, militar
que atuou na oposição armada,
até fevereiro de 1972. Um apartamento foi construído
no oitavo andar do prédio, com vidros à prova de bala. Os fi lhos aprenderam
a usar armas.

Na ocasião, um furioso editorial
contra o movimento de
guerrilha foi publicado na primeira
página: “Os ataques do terrorismo
não alterarão a nossa linha de
conduta. Como o pior cego é o que
não quer ver, o pior do terrorismo
é não compreender que no Brasil
não há lugar para ele. Nunca houve.
E de maneira especial não há
hoje, quando um governo sério,
responsável, respeitável e com
indiscutível apoio popular está
levando o Brasil...”

Em 1977, Frias demitiu o
colunista Lourenço Diaféria, a
pedido do general linha-dura
Hugo de Abreu, então ministro
e chefe da Casa Militar do presidente
Ernesto Geisel. Em sua
irreverência habitual, o escritor
assinara uma crônica sobre um
bombeiro que urinara na estátua
de Duque de Caxias, no centro de
São Paulo. Com Cláudio Abramo,
Frias também sucumbiu aos apelos
militares. O fi lho Otávio refuta
as acusações. No livro que perfi la
a vida de seu pai, Otavinho alega
que os veículos da empresa foram
usados por equipes do DOI-Codi
(órgão de inteligência e repressão
durante o governo militar) à
revelia de Frias. (EOS)

7 de maio de 2007

Nélio Lobo disse...

Desnecessário dizer que esse perfil do chairman da Folha foi o último texto de Nicoletta em Meio & Mensagem. Tal pai, tal filho...