sábado, 8 de agosto de 2009

Mundo pequeno - I


No regulamento de um concurso realizado mês passado para o batismo da seção de cartas de uma nova revista o leitor é advertido:

(...) 10- Os ganhadores do concurso cultural declaram ser de sua autoria a sugestão enviada e que a mesma não constitui plágio de espécie alguma.


Existem quantas “espécies” de plágio? Como os “ganhadores” podem declarar qualquer coisa antes mesmo de eles próprios serem declarados como tais? Como alguém pode ter certeza que sua idéia é original? Caso haja outro nome coincidente, como o participante poderia PROVAR que não teve más intenções?

Todos estamos sujeitos a passar pela péssima experiência de ver explorada uma idéia idêntica à nossa, que imaginávamos única. É um drama semelhante ao do fotógrafo que, num segundo de distração ou estupidez, deixa escapar o momento mágico, singular, irrepetível, impossível de ser resgatado. E ninguém acreditaria se ele dissesse, nem saberia o quanto é frustrante, exceto quem já passou pela mesma situação. Dependendo do lance, é como acertar as dezenas da Mega-Sena acumulada e ter deixado de registrar o maldito cartão!

Quando é má-fé e quando é mera coincidência? Quando o artista teve uma inspiração legítima ou uma reminiscência involuntária? Nem sempre é fácil determinar o que é plágio e o que é lugar-comum (clichê ou fórmula de domínio público), trocadilho e paródia. Muitas vezes, separar o que é crime e o que é homenagem, cópia e traço cultural, autoplágio e estilo é tão difícil quanto separar inspiração e influência inconsciente.

O advento da Internet, além de facilitar tanto a prática da fraude intelectual quanto a sua identificação, também serviu para evidenciar que nem tudo que é igual é cópia. No artigo “O saber não ocupa o cyberspace” (que um amigo recortou do Pasquim) há uma grave acusação de plágio contra o cartunista Angeli. Na “original” Lula se contempla num lago e ordena: “FHC, quer sair daí!”. Dois meses depois, na Folha de S.Paulo, o presidente exclama: “Uia! O que o Fernando Henrique está fazendo ali?”. Assim como há semelhanças entre Lula e FHC, as charges são semelhantes, sim, igualmente sem graça, porém não são idênticas.

Alguém pode reivindicar a precedência de uma criação, mas não sua exclusividade, nunca o monopólio de nenhuma inspiração. E se tiver havido uma charge anterior à do Pasquim Brasil afora? A mídia nacional explorou muito as semelhanças entre este governo e o anterior, e lembro-me de ter visto várias charges em que Lula se espelha em FHC, coroadas há poucos dias com a declaração do ex-presidente de que Lula copiara sua cartilha de governo (outro plágio?). Quem pode garantir que não houve uma terceira charge igual e anterior? Isso não só é possível como altamente provável.

No mesmo artigo, o próprio delator admite essa possibilidade: “Outro dia o Ota me ligou querendo saber se alguém já tinha feito uma determinada piada. Já – falei e dei a ele duas idéias”. O episódio nos remete a muitos outros de natureza igualmente duvidosa, como este que saiu no “Observatório da Imprensa”: “PLÁGIO - Empresa pequena não tem vez no Conar”. Gente! ter uma grande idéia não dá direito a nenhum gênio de sair por aí acusando quem chegou atrasado à mesma conclusão. Também já fui, em muitas ocasiões, vítima de plagiadores e sei da indignação que isso nos desperta. É o crime mais hediondo praticado contra o direito autoral.

Mas a indignação pode nos induzir a precipitações e erros. Quando textos ou imagens são idênticos, não há o que discutir, mas nem sempre o assunto é tão claro e simples. Cuidado para não dar vexame nem, principalmente, cometer injustiça. Se já é ruim você descobrir que aquela idéia que você teve “não é sua”, imagine ainda ter de responder às acusações de plágio? Deixemos para tachar assim os casos que não deixam dúvidas, de cópias fiéis ao original, ou retocadas, como o flagrante que levou à demissão do jornalista Luiz Otávio deste Comunique-se, na sexta. Na incerteza, expresse seu orgulho por ter registrado uma idéia primeiro que o Angeli, ou outro ícone. Um pouco de humildade não faz mal a ninguém e cabe em qualquer espaço.

Lembro-me de um self-service patense que tinha como símbolo o Papa-Léguas. Logo atrás, veio correndo um disque-pizza utilizando o mesmo personagem, que foi imediatamente acusado de ter plagiado o restaurante. Ué, o personagem não mais pertencia à Time-Warner? Na “polêmica” sobre as charges, ambos os artistas se inspiraram no mito de Narciso, que não é criação de um nem de outro.

“Auto-estima”

Howard Chaykin é um quadrinista americano que sempre desenha o mesmo personagem, não importa se o protagonista é da revista American Flagg!, Black Kiss ou The Shadow. Os coadjuvantes de O Cavaleiro das Trevas (DC Comics) e de A Queda de Murdock (Marvel), ambos clássicos de Frank Miller, desempenham o mesmo papel nas sagas. Na segunda, Miller substitui Superman e o líder mutante pelo Capitão América e Bazuca, respectivamente. E quantos artistas recorrem ao mesmo tema em várias telas até se darem por satisfeitos?

A primeira vez que vi o termo autoplágio ele estava associado a artigo que um jornalista havia “reciclado” de outro mais antigo, também de sua autoria. Sempre que um jornalista ou escritor é pego requentando seus textos logo é considerado um autoplagiador, definição que sempre me soou estranha. Para mim, o autor está meramente sendo repetitivo. O humorista José Simão é um exemplo que me ocorre no jornalismo. Suas frases são repetitivas, e muitas piadas nem são de sua autoria, mas nunca vi ninguém acusá-lo de cometer plágio nem autoplágio, o que de fato não parece ser o caso, pois o público, além de esperar pelos bordões, tem conhecimento que boa parte do repertório é de fontes anônimas.

Veja esta reportagem do Estadão, sob o título ‘Esqueceram de Mim 2’ é PLÁGIO do número 1:

(...) Críticos e espectadores costumam reclamar que as seqüências quase sempre são inferiores ao original. O produtor e o diretor resolvem o problema realizando exatamente o mesmo filme. Acontecem [sic] apenas algumas mudanças para disfarçar.


Salvo exceções, não acho que essas continuações, independentemente se no cinema, na TV ou na literatura, possam ser consideradas “autoplágio”, ignomínia.
É claro que tiram parte do mérito do autor e do prestígio que sua criatividade desfrutaria junto aos fãs, mas é seu direito optar por um “upgrade” de sua obra sempre que achar necessário. Por que isso não seria permissível? Não há quem diga que o bom autor sempre escreve o mesmo livro? Mas também nada impede que o autor informe suas auto-referências nos casos em que o leitor possa se sentir traído. O que faz Chico Caruso diariamente senão nítidas colagens dos mesmos desenhos, igualmente com “algumas mudanças”, mas cuja intenção não é “disfarçar”? Muitas são a mesma charge, porém devidamente numeradas para esclarecer a “continuação”, e a colagem nesse caso é meramente uma técnica artística.

A meu ver, só se poderia falar em plágio ou autoplágio quando não restasse dúvida sobre a intenção de iludir, como o publicitário que vende a mesma arte ou campanha já utilizada para outro cliente. Ainda assim, continua sendo simplesmente “plágio”, uma reprodução não-autorizada. O neologismo autoplágio é ambíguo, impreciso, contraditório, suscita dúvidas e confusões. Clonagem é mais simples e adequado. Plágio é delito tipificado e falar em autoplágio é tão estapafúrdio quanto falar em “autofurto”. Dá a entender que o proprietário da obra intelectual seria ao mesmo tempo autor e réu no mesmo processo, quando na verdade seria simplesmente um caso onde a defesa e a acusação intimariam a mesma testemunha: o criador, não detentor dos direitos de reprodução.

Numa outra hipótese, se o repórter pegasse uma reportagem ou entrevista que ele fizera há muito anos e as reeditasse para que parecessem atuais, adulterando alguns nomes e enxertando novas circunstâncias, continuaria sendo simplesmente uma clonagem, uma FRAUDE como outra qualquer. Por que necessitar-se-ia de um neologismo para designar uma prática tão antiga?

(Comunique-se, 2003)

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