quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Novos franquenstáins

Lia-se numa invejável revista de circulação nacional o título “Novos mouses”, anunciando os aparelhos então lançados. A despeito de “NOVOS MICE” ser o título correto, a repetição midiática do termo força-nos a concluir que “mouses” seja uma variação do próprio inglês –um neologismo para um novo produto. Ledo engano. Na língua inglesa, tanto o singular mouse (leia-se “maus”) quanto o plural “mice” (leia-se “mais”) são comuns aos pequeninos ratos e aos periféricos de computador. “Mouses” não é vocábulo inglês e muito menos português. A revista flexionou uma palavra estrangeira usando os critérios de nossa gramática! Algo como escrever “babby-dóis” em vez de “babby-dolls” ou “lobbys” em vez de “lobbies”. Poderia ter sido pior, claro, com o possessivo (apóstrofo “s”) no lugar da desinência, uso muito freqüente: TV’s, CD’s, mouse’s etc.

A mesma editora há muito adotou, à revelia, o gênero feminino para o grama (“uma grama de ouro”), seguindo “a regra do bom senso”. Será que a revista simplesmente aderiu à forma “mouses” por burrice ou porque julga que seus bem-informados leitores são demasiado simplórios e incapazes de assimilar certas nuances? Vejamos. As palavras estrangeiras incorporadas ao nosso idioma mantêm sua forma original (outdoor, kitsch, lingerie...). O plural delas também, por mais estranho que pareça. É o caso da italiana “paparazzi” (plural de paparazzo), da alemã “blitze” (plural de blitz), das latinas “quanta” e “campi” (plurais de quantum e campus) e da hebraica “Kibutzim” (plural de kibutz). Cadê a regra de ouro do bom senso? Embora esdrúxulas, todas fazem parte de nosso vocabulário. Por que mice ainda não? Sobretudo sendo esta mais comum que aquelas! Afinal, uma das primeiras (e para muitos, únicas) noções de inglês assimiladas na escola são os plurais irregulares “goose/geese”, tooth /teeth, foot/feet, man/men e mouse/mice.

De fato, mídia e jornalismo sempre subestimaram seu público, mas se a revista quisesse apenas evitar (conscientemente) o uso do “erudito” “mice”, não lhe bastaria fazer a tradução do termo (Novos “camundongos” ou Novos “ratinhos”)? Também não seria possível evitar-se o plural, reescrevendo a frase? Aliás, na forma “mouses”, a palavra teria de ser lida “môuses” ou “móuses”, pois é no inglês que o signo “o” teria (nesse caso) som de “a”. Como píer, jipe, caubói e picape ganharam nova grafia ao serem aportuguesadas (diferentemente de incorporadas), do mesmo modo mouse, por questão prosódica, teria de transformar-se em algo como mause (Novos mauses). Por tudo isso, o portinglês “mouses” não se justifica.

Como se sabe, esse erro não é exclusividade do invejável semanário. Está irremediavelmente disseminado e, cedo ou tarde, consagrar-se-á “pelo uso”, orgulhosamente corroborado pelos pais dos leigos e burros, que, para suplantar a concorrência, não podem limitar-se ao simples registro de neologismos (sic): “inicializar” em lugar de iniciar, “disponibilizado” em lugar de disponível ou à disposição, “prestatividade” em vez de solicitude ou simplesmente dedicação etc. Basta uma concordância ou regência manter-se errada na linguagem “viva”, ou ter precedente n’algum (?) clássico infalível revisitado, para todos assumirem e legalizarem a adoção. Infelizmente, parece aplicar-se aqui o mesmo princípio que haveria na propaganda massificada: a mentira repetida mil vezes tornar-se-ia verdade. Pelo que em tudo consta, um erro mil vezes repetido tornar-se-á uma regra gramatical. Há mesmo radicais que defendem a inexistência de “erro” em português, para os quais haveria apenas “variações regionais” (dialetos). Resta saber se na disputa por volumes cada vez mais “atualizados”, copiosos e caros, os dicionaristas, seus respectivos editores e outros em sua esteira não agem ao mesmo tempo como divulgadores e vulgarizadores, se enquanto se enriquecem não estão empobrecendo nosso idioma.

(Comunique-se, 2003)

Nenhum comentário: